Estou rodeada de chá de limão com mel. De mel escuro, mais líquido do que o normal, e com um ligeiro travo a álcool. É estranho, sim. Mas é a assim que me sabe e, coincidência ou não, só me apetece comê-lo às colheradas. Mas, como sou uma pessoa (minimamente) racional, optei apenas por o entornar na dosagem considerada como aceitável e comê-lo diluído na fluidez da água.
Há pessoas que vivem amachucadas pelo tempo. Endireitam-se como podem mas não conseguem arrumar a solidão que, pesadamente, transportam às costas.
Gosto de analisar quem me rodeia, embora nem sempre o faça – por preguiça mas, essencialmente, porque me encontro, demasiadas vezes, num estado de êxtase só meu, onde vou adormecendo e acordando sem ninguém dar conta.
Mas, como dizia, se o meu estado semi-consciente não fosse tão presente, gostava de investir mais tempo a analisar quem me rodeia porque, de facto, gosto, genuinamente, de o fazer.
E há mesmo pessoas que vivem amachucadas pelo tempo. Em determinados sítios onde vou, nas zonas mais escuras e enrugadas da cidade, vejo-as passar, arrastam o andar à velocidade com que arrastam a voz, pedem o que tem que pedir e retomam às suas casas. Dia após dia.
A solidão destas pessoas, que vivem nas ruas por onde passamos todos os dias, que respiram o mesmo ar que respiramos todos os dias e que, até mesmo, comem e dormem com o mesmo fervor com que nós o fazemos todos os dias, transtorna-me quanto mais atenta me situo, quanto mais dedicação dou às pessoas que vivem (e, na maior parte dos casos, sobrevivem) amachucadas pelo tempo.
Pelo seu avançar acelerado na idade (sim, eu sei, à mesma cadência com que eu avanço na minha), sinto os reflexos, as palavras, a articulação do seu ser a esgotarem-se. Ainda mantém a vivacidade, claro que sim: conduz, vai ali e acolá e mantém rotinas que não abdica - em especial, a compra do jornal, que folheia mais do que lê, mas que lhe é, essencialmente, uma companhia. Indispensável.
Despeço-me sempre do meu avô com um até amanhã.
No outro dia, a meio da preparação de um jantar – não referi ainda mas, uma das qualidades do meu avô, é saber cozinhar maravilhosamente bem – enquanto tentava equilibrar na sua mente onde é que o azeite estava guardado, para salpicar mais um pouco a carne que cozinhava no forno, atirou um:
- Ando a preparar uma coisa para ti… mas não está completo. – E continuou – Faltam algumas folhas, fala com os teus amigos que eles podem ter repetidos.
Pensei em cromos, pensei em livros, pensei em muita coisa. Coisas assim, no geral, que os meus amigos comprassem e tivessem adquirido em duplicado.
Ele tirou o avental, saiu da cozinha com o seu andar compassado e eu fiquei à espera.
Voltou com um monte de “fichas de cozinha”, onde em cada uma delas configurava uma receita. Vim a descobrir depois: foram compradas juntamente com o jornal que ele, religiosamente, segue.
Voltou a reforçar:
– Filha, faltam duas ou três receitas, das semanas que estive de férias. Fala com algum amigo. Pode ser que tenham repetido - para que consigas completar a tua colecção. – Amontou-as direitinhas, enquanto voltava a vestir o avental e entregou-mas.
Agradeci-lhe. E sorri para não chorar.
Despeço-me sempre do meu avô com um até amanha. E, dado que não falamos todos os dias (embora falemos com muita regularidade), o até amanhã afunda-se muitas vezes, invariavelmente, nas profundezas da não concretização.
Não sei se já disse, mas o meu avô adora cozinhar, adora um bom assado, uma boa carne e de passear o jornal, enquanto adormece sobre as suas páginas abertas. Não sei se já disse mas a minha colecção, cuidadosamente feita pelo meu avô para mim, não está completa.
Se alguém a tiver feito, por favor apite, que prometo trocar a volta ao hábito e aplicar um até logo ao invés do já habitual até amanhã.