Conto #4 O senhor que morria.
Até ao dia em que ele foi ter comigo ao atelier, eu e o senhor Joaquim nunca tínhamos trocado uma palavra, como se fosse preciso, em alguma parte do mundo, falar para nos entendermos.
E os dias rolavam, essas bolas escorregadias, e faziam-nos os favores necessários para nos cruzarmos, eu e ele, um senhor com idade para ser meu avó e eu, claro, uma miúda, já mais a atirar para mulher, com idade para ser sua neta.
O senhor Joaquim, para além da idade para ser meu avô, tinha também um nome que era igual ao dele. Eu não o sabia, nem do nome, nem tão-pouco da sua idade, e nós, ao longo de quatro meses, fomo-nos cruzando, às terças-feiras, no café onde eu tomava a minha bica de todos os dias, e ele o seu religioso abatanado das terças-feiras.
Dizia sempre o seu "bom dia" tremido, encaminhava-se para a mesa mais resguardada do café a seguir à mesa que, de facto, era a mais resguardada do café e evitava fixar o seu olhar em parte alguma, exceto nos meus olhos.
Um dia, o Augusto perguntou-me, enquanto me tirava uma bica (que, nessa manhã, como, de resto, em todas as outras, lhe pedi curta):
- Onde trabalha agora, Custódia?
- Lá me consegui despedir do balcão e montei a minha empresa de joalharia. Quer dizer, ainda não se pode chamar propriamente uma empresa… Neste momento, ainda é mais um atelier, onde faço uns desenhos e moldo uns metais.
- Ficou pelo Chiado?
- Sim, sim. Consegui uma lojeca de rua, numa ruela que dá para a Rua da Madalena.
Era terça-feira.
O Augusto depois de pousar, no balcão, os pires com as chávenas com café, dava-lhes sempre um toque para garantir que a chávena encaixava no buraquinho construído para o efeito. E, assim que eu acabava a minha bica curta, bebida religiosamente de pé, com o cotovelo apoiado, o Augusto não hesitava, e dava sempre o mesmo toque no meu pires para garantir que a chávena estava encaixada onde devia estar, só depois é que levantava o conjunto e os deitava no lava-loiça.
A televisão, por cima do emaranhado de pacotes de batatas fritas e bebidas que já tiveram melhores dias, existia, desde sempre, aos berros e sempre em canais de reality tv. Aos berros estava sempre a televisão, o Augusto que falava por cima dela para se fazer ouvir, e os olhos do senhor Joaquim que, não emitindo qualquer som, eu ouvia sem qualquer esforço.
Quando acontecia acabar o seu abatanado antes de eu acabar a minha bica e, especialmente, quando a temperatura e o vento o permitiam (o vento, claro, pela sua ausência), ele saía do café do Augusto, passava por mim de forma encolhida, dizia um “obrigado” escorregadio e encaminhava-se para o banco, junto à sebe do jardim da nossa rua, mesmo ao lado do café do Augusto, onde ficava, esbatido pelos troncos e pelas árvores e pelas folhas.
Os seus olhos que, como quaisquer outros olhos, não falavam, miravam-me com frio, vindos do seu corpo enrugado e enfiado para dentro, e miravam-me, também, com aquele gelo que cola e agarra, típico da solidão que eu, até à data e muito depois dela, desconhecia existir, mas que suspeitava haver.
Numa quarta-feira, depois de uma terça-feira em que o senhor Joaquim não apareceu, tinha acabado de fazer os quatro meses em que nunca trocamos uma palavra, como se fosse preciso, em alguma parte do mundo, falar para nos entendermos, estava eu no meu atelier, a olhar, através da montra da loja, para um amolador que se arrastava pesadamente pela rua, quando bateram à porta.
Era o senhor Joaquim, com a sua roupa creme, com o seu casaco creme, no seu corpo murcho, de camisa meia aberta. Tinha subido e descido, julgava que era uma loja aberta ao público e, quando percebeu que era um atelier à porta fechada, esteve quase para não bater. Ainda bem que o fez.
- Menina Custódia, como está?
A sua voz era tremida, enjaulada naquele corpo seco e de cor neutra, pouco espicaçada, remetida ao silêncio por ninguém querer saber.
- Senhor Joaquim! O que o traz por cá? Não se quer sentar? – Disse eu, enquanto puxava a única cadeira que existia no atelier para além da minha.
No rádio, girava a música “Melamolência”.
- Vinha saber como se encontrava a Menina Custódia. Sabe, ontem não fui tomar o meu abatanado e fiquei sem saber como se encontrava.
- Sim, de facto, senti a sua falta. Julgo que ao longo dos últimos quatro meses ainda não tinha falhado nenhuma terça-feira.
- Falhei sim, uma outra terça-feira, aqui há um mês. – Disse, ligeiramente, ofendido. Eu ia dizer que não tinha reparado mas contive-me a tempo.
- Aceita um abatanado? – Virei o assunto.
- Não, obrigado.
Era quarta-feira. Podia ser por essa razão.
“Lenda” ouvia-se agora. A música da Céu era a minha companhia preferida para dias de atelier, que eram, na verdade, todos os dias.
Quando trabalhava no balcão, também por ali naquele Chiado cada vez mais cheio de vida, passava os dias a ouvir vozes, a responder a pedidos e a obedecer a ordens. Os clientes falavam muito. Se calhar, cada um falava o normal, mas, todos juntos, falavam demasiado para uma pessoa só. Demorei a perceber que, para muitos deles, o sentido da vida era mesmo esse, aqueles minutos que falavam e que alguém ouvia, ainda que fosse apenas para executar um serviço. A ida ao balcão do banco, ao balcão da farmácia, ao balcão dos correios, era o seu momento de conversa, era a altura que dedicavam para enganar a solidão onde boiavam os minutos das suas vidas, num mundo cada vez mais povoado de vozes frescas, naquele Chiado tão novo.
Ao anoitecer, quando chegava a casa, as vozes dos clientes, daqueles que depositavam cheques atrás de cheques, reformas atrás de reformas, que pediam e pediam e pediam transferências e enchiam os meus dias de pedidos especiais, ainda estavam coladas à parede do meu cérebro que gritava por ajuda e que desejava descanso. Ainda conseguia ouvir, umas horas depois de jantar e já deitada, o eco destas vozes nos meus ouvidos, ainda conseguia reproduzir, com exatidão, os timbres e interjeições utilizadas em cada tipo de pedido. As vozes encrespadas acompanhavam-me até adormecer.
- O senhor Joaquim vive ali ao pé do café do senhor Augusto?
- Sim, vivo dois prédios ao lado, com a minha filha Helena.
Tirou, da carteira creme, uma fotografia recortada de um dos seus lados, para enquadrar o clã. Nela, existiam para além do senhor Joaquim visivelmente encavado em si próprio, uma senhora com ar imponente e mise de rolos, com uns olhos diferentes dos do senhor Joaquim, não pela cor, não pelo formato, mas por aquilo que procuravam transmitir. Ao lado, uma miúda, talvez a filha, sim, claramente a filha, com o mesmo olhar, com a mesma posse altiva da mãe e mais uma menina sentada ao colo do senhor Joaquim. O senhor Joaquim era o único que estava sentado, em torno do qual girava a fotografia.
- Muito bonita, a sua família. – Fui simpática.
- Sim. – Deixou o sim suspenso no ar que expirou. Senti-o tremer ligeiramente, enquanto voltava a guardar a fotografia.
- A Custódia é muito generosa, sabe? Gosto do seu olhar, da forma como fala sem falar, todas as terças-feiras, enquanto bebo o meu abatanado.
O CD tinha chegado ao fim, a Céu calou-se, o ambiente tornou-se ligeiramente pesado pela ausência do ruído. Lá fora um carro buzinou dando o mote para o senhor Joaquim continuar.
- A minha mulher morreu há uns anos e agora estou a viver com a minha filha Helena e com o seu marido e com as minhas netas. Passo metade do ano com a minha filha Helena e a outra metade com a minha filha Sofia. – Parou para ganhar embalo – Ser velho é um peso. É adiar constantemente a morte e não saber se se deve continuar neste limbo de fardo para os outros ou terminar tudo. É gostar de estar com as minhas filhas e com as minhas netas, de vê-las brincar e saber que, para elas, estes momentos em que partilhamos o mesmo espaço, por exemplo, num almoço de domingo, significam a boa ação da semana. Uma espécie de solidariedade social em que tenho que estar agradecido. Sinto-lhes, nos olhos, o alívio por serem duas e conseguirem dividir o peso de cuidar de um velho. – Fez uma pausa e retomou. - A vida de um velho impacta muito na vida dos novos. Tem outro ritmo, sabe? Precisa de outras coisas…Normalmente, até precisa de mais coisas!
Eu sabia. Eu percebia. Não em toda a sua plenitude, infelizmente, mas, na parte que me dizia respeito, eu sabia e percebia. Fui fazer um chá de cidreira e entreguei-lhe uma chávena. Coloquei o CD a tocar novamente e deixei-os ficar, ao CD e ao senhor Joaquim.
Na terça-feira a seguir à quarta-feira em que fui visitada pelo senhor Joaquim, acordei com uma certa ansiedade. Não tinha dormido, particularmente, bem e arranjei-me a arrastar. Estava com uma ligeira dor do lado esquerdo da cabeça que, caso não fosse atacada rapidamente, iria piorar, certamente, ao longo do dia. Tomei um remédio e desci para tomar a bica no Augusto.
Assim que entrei no café, o Augusto atirou-me, enquanto endireitava a chávena no pires:
- Veio, ainda agora, aqui a dona Helena. Provavelmente, não a conhece… A dona Helena é a filha do senhor Joaquim – Neste momento, reparei eu, olhando diretamente para a mesa mais resguardada do café a seguir à mesa que, de facto, era a mais resguardada do café, que ele não estava lá. No seu lugar, estava uma miúda a comer uma bola de Berlim enquanto lia um livro. A sua língua dava voltas aos lábios, limpando, de forma alheada, o açúcar que restava.
– Sabe, - Continuou - A mulher dele morreu aqui há uns anos e ele agora andava para aí, olhe, é mesmo assim, um bocado aos caídos… – Essa história já eu a sabia toda: uma parte, deduzi pela sua postura arrastada; a outra, contou-me ele, quando foi ter comigo ao atelier. Continuou. - A vida é mesmo assim: previsível. Todas as terças-feiras ele vinha aqui e afundava-se no seu abatanado. – Começava a ficar desperta e a dor de cabeça acelerava. – A dona Helena raramente cá vinha e, claro, sabendo que era terça-feira e vendo-a entrar porta dentro, pensei logo no pior. – Eu também começava a pensar. – Ele hoje foi encontrado – suspirou – olhe, foi encontrado morto esta manhã, no cadeirão da sala de estar. Até achei estranho, para ser sincero, a filha ter-se vindo dar ao trabalho de aqui vir. Logo no dia da morte do pai… ela que nunca aqui vinha... – E continuou…
Não bebi a minha bica. Quando olhei para ela, a espuma já estava escura e colada às bordas da chávena. Pedi um abatanado para beber pelo caminho e saí.
Sentei-me, por uns minutos, no banco, junto à sebe do jardim da nossa rua, mesmo ao lado do café do Augusto. Ele tinha razão, a vida é previsível, todos sabemos como é que ela acaba. Todos vivemos na ilusão que lhe podemos dar a volta.
Um senhor passeava um cão. Segurava um cigarro na mão esquerda.
Todos os dias são redondos, eles rebolam e entornam os seus minutos, uns sobre os outros, e repetem-se, fazem cair as suas horas e os dias, por isso, por isso mesmo, têm aquele formato que não acaba nunca, como uma bola, que retiramos da porta maior do carro, num dia de sol, e nos escorrega pelas mãos e, rola e rola, estrada fora. São assim, os dias todos, sem exceção, até ao último, que deixa de rolar e pára e desfaz-se e acaba.
O ar girava com muita força, nessa terça-feira, e eu sentia a minha dor de cabeça a esvoaçar com o vento que enrolava os meus cabelos.
Encaminhei-me para o meu atelier, abri a porta com cuidado e liguei a Céu na aparelhagem. Reparei que, o abatanado que carregava na mão, continuava intacto. Peguei numa pá e numa vassoura e comecei a limpar o pó que sempre entrava por debaixo da porta – desvantagens de uma loja de rua. Reparei que, no meio de dois flyers de restaurantes de pizzas que tinham enfiado por debaixo da porta, se encontrava uma fotografia. Nela, o senhor Joaquim pousava com a sua família de olhar austero. Nela, o senhor Joaquim afundava-se sentado, não pelo peso da criança que descansava ao seu colo, mas, possivelmente, prevendo a solidão que seria a sua vida futura. Tinha acertado. Com a sua roupa creme e com o seu olhar receoso, morreu sozinho numa terça-feira de Novembro.
No verso, apenas existia o seu nome desenhado a letra esforçada. Entrava agora ““Melamolência”” da Céu, e eu deixei-me estar, sentada no chão de o meu atelier, enquanto sentia toda a tristeza que emanava daquela previsão de futuro acertada.